A Maldição da Lucidez
Agosto 14, 2023
A obra de José Saramago é conhecida pela sua habilidade em explorar cenários partindo de uma suposição inicial "E se". E se as pessoas deixassem de morrer, e se alguém descobrisse ter outra pessoa igual a si, são exemplos. Dois dos seus livros, "Ensaio Sobre a Cegueira" e "Ensaio Sobre a Lucidez", não compartilham apenas semelhanças no título. Questionam respectivamente: e se uma cegueira branca atingisse a humanidade, e se um dia as pessoas votassem todas em branco? Queria rabiscar sobre a minha experiência com os dois livros, como se ligam em mim, cegueira e lucidez a entrelaçar-se no branco e pelo final só me resta um incómodo profundo.
O "Ensaio Sobre a Cegueira" apresenta-nos uma sociedade afectada por um surto de cegueira branca. Conforme a cegueira espalha-se as personagens enfrentam uma luta pela sobrevivência numa sociedade em colapso. Esta cegueira pode ser vista como metáfora para a falta de empatia, compreensão ou num sentido mais amplo, conexão humana. No "Ensaio Sobre a Lucidez", que pode ser entendido como uma sequela, o José Saramago mais uma vez joga com a metáfora da cegueira, agora de forma não tão óbvia. Na lucidez a cegueira assume a forma de ilusão, a ilusão dos votos brancos numa eleição. Quando a maioria dos votos da eleição são brancos a sociedade fica perplexa e a história desenvolve-se na exploração das ramificações políticas e sociais do acontecimento. A lucidez surge como a rejeição da complacência e uma busca por clareza moral e política, uma antítese à cegueira generalizada do primeiro livro. Ainda assim esta lucidez de alguma forma deixa-se cegar.
Um aspecto intrigante (ou não tanto) destes dois livros é a presença da mulher do médico e do cão das lágrimas. A mulher do médico destaca-se em "Ensaio Sobre a Cegueira" e o cão assume um papel ainda mais relevante no "Ensaio Sobre a Lucidez". Ambos podem ser interpretados como um símbolo da conexão emocional e fidelidade resistente aos desafios do caos branco. A cegueira branca e os votos brancos podem ser interpretados enquanto factores, de omissão e acção respectivamente, expositores da complexidade política e social da democracia. Esta mulher outrora unificadora num mundo de cegos, num mundo onde há novamente visão avista-se disruptiva, perigosa e ninguém atenta à sua vulnerabilidade. Se na cegueira o declínio foi garantido, nas eleições há que ser evitado. Se inicialmente o branco tira a visão às pessoas, quando a cegueira desaparece o poder da cor fica nas mãos do povo, agora sem véus e vendo realmente, o voto expressa-se na mesma cor branca, quase atestando estávamos cegos mas já não. Os dois livros apontam ilusões dos sistemas políticos onde nos inserimos. No extremo a lucidez desestabilizou a (pseudo)democracia, enfraquecendo o seu funcionamento e a integridade do indivíduo é colocada em causa. Nos dois contextos o branco impõe questões intrusivas. Os dois ensaios entregam o preço social de quem não cegou física nem mentalmente.
Gosto dos dois livros já os li há muito, até já reli "O Ensaio sobre a Cegueira". Entendo como necessário o final do "Ensaio sobre a Lucidez" e ainda estou longe de desculpar o José. A sociedade não tem a coragem da mulher do médico, ela nunca cegou e isto pesou-lhe como um estigma. O feito em "Ensaio Sobre a Lucidez" é imperdoável, só justificado em nome de uma aprendizagem maior, colocando uma espécie de maldição no próprio Saramago. O criador aniquila a criação, o que amas ser-te-á vedado. De alguma forma diz estás a ler és responsável, sente-se como um livro maldito.