Um Silêncio Só Teu
Dezembro 03, 2023
No ensaio "O Silêncio dos Livros" George Steiner começa por considerar o limitado período de tempo ao qual temos acesso a ler, e facilmente percebemos estar mais distanciado o épico de Gilgamesh da Bíblia do que esta de Ulysses. A nossa compreensão literária não abarca todo o espectro da existência humana e é nesse contexto que Steiner nos conduz à relação entre Mestres e discípulos: presenças reais, onde realça todo o escrito ter uma ordem contratual pois implica entre autor e leitor uma promessa de sentido. A oralidade surgiu enquanto verdade, uma honestidade necessária à autocorrecção, democracia enquanto partilha comum. O surgimento do texto escrito invalidou tudo isto. A oralidade implica uma reactualização da memória, já o livro (ou até os computadores actuais) convida à amnésia. Os evangelhos surgiram por esta urgência da não existência de um tempo para o cultivo e apuramento da memória oral. A questão da memória é exemplificada no único momento em que Jesus é relatado a escrever. Ele escreveu na areia e logo apagou o escrito sem sabermos o que disse. A Idade de Ouro do Livro diz-nos da actual perda do silêncio enquanto luxo, fomos invadidos por álbuns de música e novas tecnologias: Hegel e Kierkegaard foram os primeiros a notar a aceleração temporal vivida. Steiner neste capítulo defende o tempo livre para leitura séria ser quase exclusivo de académicos e investigadores. No geral matamos tempo em vez de nos sentirmos à vontade dentro dos seus limites.
No terceiro capítulo, As duas correntes contestatárias, lemos sobre a primeira contestação ao livro. Steiner chama-a de “bucolismo radical” e, neste contexto, a leitura é relegada a um papel secundário. Primeiro devemos dar-nos à vida, viver e correr riscos. Neste enquadramento, ler é um acto de renúncia à vida por recusa dos riscos e relação primária e primeira com o mundo. A segunda contestação ao livro surge em função da primeira: para o homem comum roupa e comida serão mais importantes às grandes obras literárias. Chegamos assim ao meu querido Tolstoi e à sua fase final de vida. Tendo noção de ser o melhor dos escritores relegou toda a sua obra. Uma versão simplificada dos evangelhos, num essencial de Cristo, diz ser toda a literatura necessária. Tolstoi sabia da ausência da escrita nos ensinamentos de Jesus e tinha-o como uma bênção. Porém o questionamento de Keats subsiste: como alguém ousa escrever tragédia depois de Hamlet e Rei Lear? Uma solução é a de Ezra Pound pela rejeição do peso asfixiante do passado.
Os livros são também objectos frágeis, tantos foram submetidos ao fogo e ainda hoje grandes obras estão em perigo. Entre os exemplos termina com o ardido "Aretino" de Georg Büchner e eu lembrei-me agora do incompleto "Almas Mortas" do Nicolai Gógol. Em Novas Ameaças continua a falar de um outro silêncio, o silenciamento de livros nas democracias actuais. Analisa o perigo da literatura subversiva em contextos específicos, defendendo, no entanto, a liberdade. A chegada dos meios electrónicos levou curiosamente a um aumento dos livros impressos em formato físico, mas este aumento é um dos maiores inimigos dos próprios livros ao perderem-se no número e não conseguirem uma aprovação social e crítica imediata. As gerações da televisão e da internet parecem cada vez mais incapazes de desfrutar da leitura em silêncio. Esta é uma mudança rápida a acontecer, uma transição ainda a perceber e que pode terminar com a dita leitura clássica, o silêncio, o saber-se de cor(ação).
O escândalo do livro reside no facto da erudição e cultura não nos salvarem da barbárie. A Europa do século 20 testemunhou-o na Alemanha, onde o nível cultural elevado não impediu a ideia de o único erro possível era ser-se judeu. Grandes pensadores foram apanhados em teias de pensamentos dúbios: Sartre no seu apoio comunista, atestando todo o anti-comunismo como uma inferioridade e ignorando as selvajarias cometidas pelo comunismo. Se nos sensibilizamos com Proust e se a Bovary vai viver para sempre, enquanto leitores vamos ficando sintonizados para uma sensibilidade sobre a ficção. As desgraças entregues pelos media chegam-nos e preocupam-nos. Com tudo isto tendemos a ignorar a realidade primária, o grito ouvido pela janela. Isto lembra-me o conto "O Silêncio" de Sophia de Mello Breynner Andreson no qual precisamente o primeiro grito ouvido por Joana lhe rompe a realidade e actua como ferida. Joana ao não ignorar o grito volta a si já estrangeira de si mesma. Na prática das humanidades, a leitura e estudo de livros podem paradoxalmente desumanizar. Sendo professor, Steiner não possui resposta para este problema.
Para finalizar, o livro tenta um contraponto, "Esse Vício Ainda Impune", elaborado por Michel Crépu. Este ensaio é extremamente interessante no estabelecimento de uma verdade entre a gravidade e leveza dos questionamentos destas duas visões. Será que podem os dois estar correctos? Talvez estejam. Se inicialmente podemos estar de acordo com Steiner, pelo final, Crépu pode ajudar-nos a moderar os seus próprios ideais através das ideias mais pesadas de Steiner, um caminho de pensamento infinito. Neste confronto, parece haver promessas de sentido não realizadas. Ou, melhor ainda, quantas interpretações podemos extrair de uma pergunta? Quanto a mim, em relação à questão mais simples e envolvente, antes, durante e depois desta leitura de agosto, expresso minha gratidão pelo silêncio nos e com os livros.