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E fez da vida ao fim…

breve intervalo

E fez da vida ao fim…

Para dezembro continuo a ler o "Confissões" de Santo Agostinho e "Stories of Books and Libraries" da Everyman. "Serotonina" foi o meu segundo Houellebecq e para já prefiro o "Partículas Elementares", talvez pelo vinculo estabelecido com "Admirável Mundo Novo" do Aldous Huxley. Ainda mantenho a ideia deste escritor dificilmente ser capaz de me surpreender com um mau livro ou menos literário. Este em particular não acho inesquecível, relevante por um retrato das nuances da sociedade actual e isto já é fazer muito. A problemática da exploração e sofrimento animal, da insuficiente produção alimentar, a internet. A promessa química de uma forma de sofrimento menos emocional, a entrega da libido como forma de pagamento a uma outra lucidez não necessariamente para agir de forma a um fim diferente. Li o segundo volume de "1Q84", estou a gostar bastante do livro e já iniciei a terceira parte. Tenho uma relação diferente com este escritor, talvez estabelecida nos mesmos parâmetros dos seus livros, com emoções diferentes, de natureza mais inexplicável e contemplativa. Até ver pode este ser o meu livro favorito do Murakami. "Hiroshima" de John Hersey é um livro breve e no qual me demorei. São facultados ao leitor seis testemunhos de sobreviventes ao ataque americano a "Hiroshima". As várias descrições foram complicadas de assimilar e preferia então parar a leitura de forma recorrente. Achei uma leitura muito boa por acrescentar e, ao contrário do belo "Oppenheimer", necessária.

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Para finalizar "Viagem ao País da Manhã" e "A Escavação" de Hermann Hesse e Andrei Platónov. É o meu quarto livro do Hesse, um escritor com qual me desentendi em "Narciso e Goldmund" e "O Lobo da Estepe", não pela escrita mas por razões mais metafísicas, de me fazer revirar os olhos. Comecei as pazes com Hesse em Siddhartha e agora neste pequeno livro (o meu favorito até ver). Já tenho em mim a promessa de reler os dois primeiros livros novamente. O Platónov foi uma estreia (entretanto já encomendei o "Djan ou a Alma"), apreciei particularmente a força dos lirismos e a crueldade descritiva sem drama associado. "A Escavação" surge como parábola onde o escritor actua como um Dostoievski com modos de Chekhov num enredo de Kafka, um talvez familiar literário de Saramago. Isto não diz nada do Platónov, é a minha tentativa de engavetar um escritor do qual pouco tinha a esperar e com o qual, apesar dos terrores socialistas, terminei novembro muito bem.

 

Desde que decidimos viver juntos a nossa colecção de livros naturalmente cresceu. Logo aquando a junção das estantes tornou-se-me cada vez mais difícil ter uma ideia clara de todos os livros que temos. Foi então no início de Setembro que pensei utilizar a recente conta no The StoryGraph (uma óptima alternativa ao Goodreads) e durante praticamente um mês a nossa lista de livros foi-se concretizando. Alguns dias listava apenas só um cubo em outros nenhum e no último dia uma pequena maratona hercúlea, a última estante de uma única empreitada. Grande parte dos livros não existiam ainda na base de dados, pelo menos com as nossas edições, foi custoso ter de acrescentar mais de um milhar de livros, capas, número de páginas, sinopses... um filme. Neste post quero registar a experiência de ver pela primeira vez todos os livros de casa listados e como o The StoryGraph pode ou não surpreender com a análise estatística dos dados da nossa biblioteca. Conto que seja o primeiro de vários posts a devanear sobre os meus dados de leitura.

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Ao todo listei 1481 livros, é este o número total da nossa biblioteca no momento. Sendo necessário destacar o facto de os ebooks não estarem todos devidamente listados, mas apenas os já lidos. Os que temos e estão por ler decidi por praticidade (e preguiça) não listar. Deste 1481 livros posso já concluir que temos uma biblioteca maioritariamente de natureza reflectiva, desafiante e emotiva. Poderia continuar dizendo ser uma biblioteca obscura, de aventuras e mistério, por aí segue. Se algum dia me perguntassem qual seria a principal traço da soma dos nossos livros não chegaria a um reflexivo e sabê-lo agrada-me. 

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Do já dito era fácil prever o tipo de formato principal da biblioteca ser o livro físico. Pouco podem os 2% de livros electrónicos fazer em relação a isto. Cá em casa penso ser eu o que ainda vai espreitando mais o Kindle, no geral preferimos ambos os livros físicos. Acho que não posso escrutinar qual a quantidade de capas duras e moles, mas adivinho que apesar de os paperbacks existirem em maioria, não seria uma diferença tão discrepante assim. Há muitas capas duras cá por casa.

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Em relação ao ritmo de leitura compramos maioritariamente livros de ritmo lento (51%) e intermédio (43%). Os 6% em livros de leitura rápida mostram que naturalmente não tendemos para comprar este tipo de livros. Isto não significa não se gostar de livros assim. Terei futuramente de averiguar dentro destes 74 livros (6%) que livros estão incluídos, quais li e o que acho dos mesmos. 

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Já o número de páginas encontra-se mais distribuído. Na maioria os livros têm menos de 300 páginas (47%), 693 livros na verdade, logo seguidos por livros de 300-499 páginas (30% - 447 livros) e por fim 23% dos 340 calhamaços com mais de 500 páginas. Pode-se assim constatar que a razão entre o número de livros comprados e  as páginas que possuem é inversamente proporcional.

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A relação ficção/não ficção fiquei um pouco triste ao constatar que não possuímos nem 25% de não ficção nas estantes. Algo a mudar de futuro, comprar mais não ficção e estes meros 20% representam 289 livros de não ficção e assim a história já não me parece tão feia!

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Relativamente aos géneros talvez seja onde coloco mais dúvidas na devida identificação, onde possa ir ocorrendo maior número de mudanças consoante cada livro for devidamente ajustado na sua catalogação. Mesmo assim não me espanta um primeiro lugar esmagador para os clássicos (684), e logo de seguida livros de teor mais literário, não contava com históricos e contos terem uma expressão tão elevada (160 livros), fiquei contente, principalmente pelos contos. Achava termos bem mais ficção científica (68 livros), algo onde se pode investir ainda à vontade. A poesia parece-me muito bem representada, um nono lugar correspondente a 89 livros.

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Em relação a autores, algumas coisas surpreenderam-me, mas começo pelo óbvio. O escritor com maior número de livros cá em casa é o António Lobo Antunes (38 livros), o segundo lugar foi uma surpresa tendo em conta até à data só eu o ler, Stephen King com uns jeitosos 26 livros. O bronze vai para José Saramago (26) e na corrida chega logo atrás o Murakami (21). Virginia Woolf surge-nos em quinto num empate com Jorge de Sena (20) e Proust apresenta-se em sexto com 17 livros, impressionante se pensarmos que a sua obra facilmente se resume no geral a um livro de 7 volumes, mas temos eventualmente algum ensaio, os contos e lá ocupa uma posição inesperada. A lista termina com Dostoevsky e Sophia de Mello Breyner Andrensen empatados (16) e Tolkien (15). Dizer escandaloso não ter mais Fiodór e isso ter de ser alterado. 

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Nas línguas parece-me existir uma distribuição equilibrada, ganha claro o português com 73,3% e logo de seguida o inglês a ocupar mais de 25%, com 395 livros. Por fim um único livro em espanhol, Javier Marias com o seu " Corazon Tan Blanco". Provavelmente outros em espanhol chegarão. Achamos uma tradução horrível da Alfaguara para este escritor, decidimos então pela provável leitura da obra no original.

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Quase a terminar esta primeira abordagem, e de forma feliz q.b., de todos os livros comprados tenho 44% lidos e 56% por ler. Em termos de números tudo escala facilmente, vejamos, 645 livros lidos e 836 por ler. Nestes livros por ler não estão incluídos livros repetidos com edições diferentes, isto é, temos 108 livros repetidos em edições diferentes das que já li. Mais, há umas quantas edições literalmente repetidas não listadas e não entram em todas estas contas, esqueci-me aqui também das repetidas do The Great Gatsby.

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Para terminar este primeiro post sobre a biblioteca cá de casa, dizer que o meu average rating é de 4,28 estrelinhas. Tenho ali bastantes leituras com 5 estrelas (136 livros). Para futuro, mesmo nas releituras, tentar perspectivar a minha relação com todos estes livros. Acho difícil entendê-los todos em mim como perfeitos ou insuperáveis, portanto alguns poderão descer ligeiramente para uma melhor percepção do que tenho por favoritos dos favoritos, vou colocar a questão nestes termos. Tirando este detalhe, a distribuição revela no geral os nossos livros não me desagradarem, cá em casa parece escolher-se bem o que se quer ter para ler. Os livros com avaliação inferior a 3 estrelas são cerca de 20 e para alguns destes talvez ainda me tenha de redimir, a título de exemplo "Um Quarto Com Vista" do E. M. Forster. Disto falarei num outro post sobre as minhas leituras e a biblioteca cá de casa. 

A obra de José Saramago é conhecida pela sua habilidade em explorar cenários partindo de uma suposição inicial "E se". E se as pessoas deixassem de morrer, e se alguém descobrisse ter outra pessoa igual a si, são exemplos. Dois dos seus livros, "Ensaio Sobre a Cegueira" e "Ensaio Sobre a Lucidez", não compartilham apenas semelhanças no título. Questionam respectivamente e se uma cegueira branca atingisse a humanidade, e se um dia as pessoas votassem todas em branco. Queria rabiscar sobre a minha experiência com os dois livros, como se ligam em mim, cegueira e lucidez a entrelaçam-se no branco e pelo final só me resta um incómodo profundo.

O "Ensaio Sobre a Cegueira" apresenta-nos uma sociedade afectada por um surto de cegueira branca. Conforme a cegueira espalha-se as personagens enfrentam uma luta pela sobrevivência numa sociedade em colapso. Esta cegueira pode ser vista como metáfora para a falta de empatia, compreensão ou num sentido mais amplo, conexão humana. No "Ensaio Sobre a Lucidez", que pode ser entendido como uma sequela, o José Saramago mais uma vez joga com a metáfora da cegueira, agora de forma não tão óbvia. Na lucidez a cegueira assume a forma de ilusão, a ilusão dos votos brancos numa eleição. Quando a maioria dos votos da eleição são brancos a sociedade fica perplexa e a história desenvolve-se na exploração das ramificações políticas e sociais do acontecimento. A lucidez surge como a rejeição da complacência e uma busca por clareza moral e política, uma antítese à cegueira generalizada do primeiro livro. Ainda assim esta lucidez de alguma forma deixa-se cegar.

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Um aspecto intrigante (ou não tanto) destes dois livros é a presença da mulher do médico e do cão das lágrimas. A mulher do médico destaca-se em "Ensaio Sobre a Cegueira" e o cão assume um papel ainda mais relevante no "Ensaio Sobre a Lucidez". Ambos podem ser interpretados como um símbolo da conexão emocional e fidelidade resistente aos desafios do caos branco. A cegueira branca e os votos brancos podem ser interpretados enquanto factores, de omissão e acção respectivamente, expositores da complexidade política e social da democracia. Esta mulher outrora unificadora num mundo de cegos, num mundo onde há novamente visão avista-se disruptiva, perigosa e ninguém atenta à sua vulnerabilidade. Se na cegueira o declínio foi garantido nas eleições há que ser evitado. Se inicialmente o branco tira a visão às pessoas, quando a cegueira desaparece o poder da cor fica nas mãos do povo, agora sem véus e vendo realmente, o voto expressa-se na mesma cor branca, quase atestando estávamos cegos mas já não. Os dois livros apontam ilusões dos sistemas políticos onde nos inserimos. No extremo a lucidez desestabilizou a (pseudo)democracia, enfraquecendo seu funcionamento e a integridade do indivíduo é colocada em causa. Nos dois contextos o branco impõe questões intrusivas. Os dois ensaios entregam o preço social de quem não cegou física nem mentalmente.

Gosto dos dois livros já os li há muito, até já reli "O Ensaio sobre a Cegueira". Entendo como necessário o final do "Ensaio sobre a Lucidez" e ainda estou longe de desculpar o José. A sociedade não tem a coragem da mulher do médico, ela nunca cegou e isto pesou-lhe como um estigma. O feito em "Ensaio Sobre a Lucidez" é imperdoável, só justificado em nome de uma aprendizagem maior, colocando uma espécie de maldição no próprio Saramago. O criador aniquila a criação, o que amas ser-te-á vedado. De alguma forma diz estás a ler és responsável, sente-se como um livro maldito.

Num exercício de esforço para tentar manter o blog lembrei-me de falar de uma surpresa literária do ano passado. O título deste texto seria "Rilke mas não rilkou", entretanto algo mais lato surgiu-me. Não serão só as cartas do Rainer Maria Rilke ao jovem Franz Xaver Kappus, o pequeno poeta, a sofrer por certo com erros de percepção ou magias editoriais.

Li pela primeira vez o "Letters to a Young Poet" em 2019 num mês de verão diria, atiro para Julho. Na altura fiquei fascinado pelas cartas do Rilke ao jovem rapaz. Não eram estas só uma espécie de manual para a arte, para estar na vida. Eram uma luz numa mente (a minha) naturalmente com tendências para a escuridão. Enquanto lia o livro o fascínio levou-me a partilhar no instagram o quão maravilhosa estava a ser a experiência de leitura e algo estranho aconteceu. Não estando eu habituado, porque jamais me habituarei, à maluquice das massas humanas nas redes sociais, eis alguém a ver-me ler o livro, digo nas massas mas na verdade foi só uma pessoa, entra em contacto comigo e diz ir lê-lo comigo. Petrifiquei e pensei, comigo? Como é isto de se ler assim comigo? Só aceitei, sorri acenei e continuei a ler como sempre li, sozinho. Terminei o livro e a magia permanecia. Estava encantado pelas palavras de Rilke, da esperança entregue, onde de alguma forma me era dito nada ser vão, mesmo a escuridão, solidão.

Passaram meses e soube de uma nova edição do livro onde estariam incluídas as cartas do jovem poeta. Não só as cartas do Franz Kappus, mas também uma suposta carta apagada. Ainda hoje não sei porque as pessoas se impigem em leituras alheias. Solidão talvez, artes menos óbvias de insurgimento na vida alheia. Brincam com os livros e as leituras não como as crianças brincam, antes adultos falhos no crescer. Se é belo existirem crianças já crescidas, adultos pueris surgem-me assustadores. A pessoa continua com essa peculiar forma de estar, felizmente afastou-se naturalmente sem nada ter de dizer, fazer. Os ventos da internet. No ano passado lá comprei esta nova edição das cartas. Achava estar a adquirir um livro onde a entrega do encantamento seria exponencial, isto pela desculpa da reciprocidade da correspondência. Já Eça nos dizia falharmos a vida pensada com a imaginação. Se achamos algo invarialmente assim a vida dará algo de distinto. A releitura não correu como o esperado. Cartas a um Jovem Poeta

Eis Junho de 2022 e eu a reler a nova edição (visível na fotografia deste texto). À medida da leitura articulava as cartas do jovem rapaz com as de Rilke e começo a entender sentidos anteriormente vedados pela falta das cartas do rapaz. As cartas do Rilke não perderam valor, antes as do rapaz não acrescentaram algo ao dito pelo poeta. Diminuiram até a amplitude de algumas ideias antes não direccionadas. Kappus não me pareceu um jovem particularmente inocente, ou melhor, desinteressadamente interessado em Rilke. Por consequência a perda da amplitude vaga e magia das respostas de Rilke, agora no particular deste rapaz, ganhou em realidade a leitura. Se ambas as edições entregam ao leitor não ficção, numa há um quimerismo ficcional, na outra este é preenchido por um lugar mais telúrico. Rilke não escrevia para uma espécie de versão imatura de si mesmo, aqui percebemos o importante. O rapaz ajuda-nos a situar Rilke no tempo, no espaço e atribui uma fricção real aos textos da edição sem as suas cartas.

O "Letters to a Young Poet" agrega admiração de nomes vários ao longo dos tempos: Marylin Monroe, Konrad Zuse, Dustin Hoffman ou até mesmo a tatuagem de Lady Gaga. Os editores sabiam nesta nova edição um outro livro. Um outro livro que Franz Kappus proporcionou e assim, de forma querida, mantiveram as cartas de Rilke agregadas. Quem quiser ler as do rapaz só tem de ir alternando entre páginas e intercalando. Uma experiência mais real, entendedora do poeta e sem negar a magia da unilateralidade das cartas de Rilke sozinhas, enquanto unidade não ficional ficcionada.

Sobre

21aafb00b84d1f9249b0b9a10481d2f3.pngO blog enquanto página pessoal tem como objectivo trazer um registo da vida que se insurge à correria do dia a dia, intervalos no intervalo. O "breve intervalo" surge como pausa, reflexão e memória do não empregue nos meus cadernos. Ao fim, essa outra vida trivial: a das opiniões, dos passeios, do não se querer esquecer e manter em permanente rascunho.

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