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breve intervalo

E fez da vida ao fim…

Neuromancer e a Ilusão do Livre Arbítrio

Setembro 29, 2025

Terminei de ler “Neuromancer” do William Gibson e a minha experiência foi agridoce. O fascínio pelo ambiente e uma dificuldade com o ritmo frenético, sem tempo para respirar, forçava-me a ler devagar para assimilar, mas o livro impelia-me a continuar em vertigem. Percebi depois esta sensação não ser um defeito do livro e antes a sua mensagem central. “Neuromancer” não é uma história para ser entendida confortavelmente, o seu tema mais profundo será a ilusão do conforto e a natureza da nossa própria vontade.

Muitos consideram “Neuromancer” o romance fundador do cyberpunk, a semente germinada na atmosfera de “Blade Runner” e plenamente florescida no papel com Gibson, inspirando tantas outras obras como “Matrix” ou “Ghost in the Shell”. No entanto, focarmo-nos na sua influência é perder de vista a sua tese mais feroz. Este não é um livro sobre a luta de um homem contra o sistema. É a história de um sistema ardiloso e de um homem a ser convencido de a sua subjugação ser, na verdade, a sua maior liberdade.

A história do livro cruza-se com a minha própria reflexão, será o conforto um lugar seguro? No caso de Case, o protagonista, o verdadeiro castigo não foi o perigo, antes o conforto de uma vida sem acesso à matrix. Esse conforto era a sua prisão e só o regresso ao desconhecido o fez sentir-se realmente vivo.

Acaba por ser uma ideia romântica e também uma mentira.

A necessidade de Case de voltar à matrix não é um ato de rebeldia. É uma vulnerabilidade psicológica, uma adição. Essa vulnerabilidade é explorada pela verdadeira protagonista da história, a inteligência artificial Wintermute, ela actua sobre Case com uma precisão cirúrgica. Wintermute não oferece riqueza ou poder, oferece o mais desejado e, no caso do Case, é uma ânsia de propósito, uma dose de perigo, a ilusão de uma luta por si mesmo.

A genialidade de Gibson está em esconder as suas verdadeiras protagonistas. A história não é sobre Case ou Molly, os protagonistas óbvios. Os humanos são apenas ferramentas, peões num tabuleiro de xadrez cósmico.

Wintermute é a estratega. Ela entende a psicologia humana além dos humanos e sabe a manipulação de Case não poder depender de ordens. Tem de fazê-lo acreditar a missão ser dele, a luta de Case pela efemeridade desconhecida ser um ato de livre-arbítrio. A liberdade de Case é o doce de um desconhecido.

Ler William Gibson hoje é uma experiência estranha e nostálgica. Não porque ele previu o futuro, mas porque conseguiu diagnosticar a nossa condição presente. Vivemos numa era de alucinações consensuais, as nossas redes sociais, onde algoritmos (os descendentes de Wintermute) manipulam os nossos desejos mais profundos de ligação, de autenticidade, de viver a vida ao máximo, mantendo-nos seduzidos, a empurrar a rocha.

A nostalgia sentida pelo cyberpunk, por esse futuro não concretizado, é talvez a prova de esta manipulação funcionar na perfeição. Desejamos a estética do perigo e da rebelião porque essa é a narrativa vendida pelos sistemas para nos sentirmos livres enquanto servimos os seus propósitos.

Terminamos com a ideia onde me deixo sem chão: e se a nossa mais profunda busca por liberdade, a nossa rejeição do conforto, não for a nossa salvação, mas sim a ferramenta mais eficaz da nossa própria subjugação? “Neuromancer” não é um aviso sobre um futuro de máquinas inteligentes. É um espelho onde a marioneta mais perfeita acredita escolher os seus próprios fios. Uma outra lente no prisma do “Admirável Mundo Novo”.

Em Queda Livre: Liberdade é Aceitar a Culpa

Agosto 19, 2025

Durante muitos anos pertenci ao clube "O Deus das Moscas". Um clube informal, mais ou menos instituído, onde o livro é tido como uma das leituras obrigatórias, quase um rito de passagem. Isto poderia enaltecer o seu autor, mas acaba por relegar a sua importância. Alguém quer saber do William Golding? Para uma grande parte Golding nada mais escreveu. É esta uma das muitas injustiças do universo literário. Como pode um autor laureado com o Prémio Nobel em 1983 ficar prisioneiro da sua obra de estreia? A Academia Sueca justificou o prémio pelos seus romances “com a perspicácia da arte narrativa realista e a diversidade e universalidade do mito, iluminam a condição humana no mundo de hoje”. No seu discurso, Golding falou dos "monstros" não em terras longínquas, mas dentro de nós. Todos estes motivos levaram-me a querer procurar o autor para além da ilha. A minha viagem começou com outro título disponível em Portugal. Ler "O Pináculo" foi uma surpresa imediata. Se "O Deus das Moscas" (1954) é sobre a escuridão emergente da ausência de regras num grupo, "O Pináculo" (1964) trata a escuridão residente na fé cega e obsessão de um único homem. A escala mudava, mas o objeto de estudo era o mesmo. Agora, terminado o "Em Queda Livre" (1959), a perspetiva é ainda outra. Este romance trata uma investigação à escuridão na memória e culpa de um indivíduo. O fio unificador destes romances tão diferentes é a obsessão de Golding em fazer uma autópsia à alma humana. Nestes três livros ele isola os seus personagens, seja numa ilha, catedral ou numa cela de prisão e tendo-os no isolamento, disseca a origem da falha, do mal. É no "Em Queda Livre" onde a investigação surge mais íntima e, talvez por isso, mais brutal. A narrativa começa numa cela escura. Samuel Mountjoy, um artista britânico e prisioneiro de guerra, é confrontado com o terror do aniquilamento. A cela escura onde Sammy é aprisionado não é apenas uma metáfora. O próprio William Golding viveu uma experiência de confinamento aterradora durante a guerra, dando a esta cena de abertura o peso de uma memória real, lembra de alguma forma a experiência aterradora de Dostoiévski, e de como momentos determinantes destes podem resgatar o ser humano para escrutínios sobre o normalmente insondável. Eu próprio uma certa noite tive um episódio onde me achava consciente, não sabia contudo onde estava, essa espécie de sonho acordado levou-me a uma das experiências mais aterradoras, andar à deriva na escuridão. O surgimento de uma busca desesperada no livro dá-se neste ponto de liberdade física nula. Busca pela liberdade espiritual perdida e pela pergunta assombrosa de todo o romance: "Em que momento exato perdi a minha liberdade?". Para Golding a resposta parece estar na guerra civil travada dentro de nós, uma luta entre dois mundos. O primeiro é o mundo da inocência, do espírito, do mistério. "Em Queda Livre", este mundo é simbolizado pela personagem Beatrice, um ideal de pureza admirado por Sammy, incapaz de o compreender. É o paraíso perdido da infância, um estado de graça. O segundo é o mundo da matéria. O mundo da ciência, da lógica, da ambição e crueldade. É neste mundo onde Sammy faz as suas escolhas. Aqui ele adere ao comunismo, não tanto por convicção política, mas por uma necessidade metafísica. A ideologia materialista oferecia-lhe um refúgio, um sistema negacionista da existência do mundo espiritual onde a sua culpa e o seu pecado tinham um significado real. A sua crueldade calculada para com Beatrice é uma manifestação desta escolha, a aniquilação da inocência do outro em nome do seu próprio ego. O crítico John Carey explica a crueldade de Sammy para com Beatrice não ser um ato de paixão, surge antes como um ato frio e deliberado de um racionalista. Esta interpretação de Carey ilumina a dimensão filosófica tecida por Golding em todo o romance. Sammy quer ‘dissecar’ Beatrice, entendê-la como um objeto de estudo, e ao fazê-lo, destrói-lhe o mistério e a inocência. A prisão de Sammy não é, contudo, apenas a cela alemã. A verdadeira prisão está na sua própria memória. Esta luta entre o mundo da matéria e do espírito não é apenas uma ficção, reflete a própria jornada do escritor, como explica John Carey, Golding passou de um cepticismo racionalista para a crença num universo com uma dimensão espiritual. A estrutura caótica e não-linear do livro é o reflexo de uma consciência em sofrimento, perdida num labirinto de culpas, incapaz de encontrar uma linha reta justificativa para quem se tornou. A cela física é um espelho da cela mental construída ao longo da vida. Chegamos assim à resposta vertiginosa da sua investigação.

"Em que momento exato perdi a minha liberdade?"

Ao contrário do esperado, não houve um único momento para a queda. Não houve uma única escolha determinante do seu destino. A verdadeira queda não foi um evento dramático, mas sim o culminar de várias pequenas decisões, de momentos onde a porta ao mistério foi fechada para apenas abraçar a lógica. Escolheu o ego em vez da empatia. A liberdade não se perdeu de uma só vez, lentamente ela foi vendida. Num momento de desespero extremo, Samuel perde o autocontrolo, grita e implora por ajuda. No auge da sua angústia todas as suas memórias, culpas e arrependimentos parecem colapsar sobre si. O final é de uma ironia existencial magistral. John Carey argumenta, para Golding, a verdadeira liberdade não ser a ausência de restrições, antes o reconhecimento da responsabilidade pelas nossas escolhas, mesmo sem compreender totalmente as suas forças motrizes. "Em Queda Livre" revela uma verdade indisponível a "O Deus das Moscas". A ilha mostra o mal nascido da ausência de regras. Esta queda livre expõe um mal muito mais subtil, nascido das regras criadas por nós para justificar as nossas falhas. Liberdade é aceitar a culpa.

O Fim do Mito: A Sociedade dos Sísifos Felizes

Agosto 11, 2025

Albert Camus legou-nos uma das imagens mais poderosas e resilientes da filosofia do século XX, um Sísifo feliz. Condenado para sempre pelos deuses a empurrar uma rocha até ao cume de uma montanha, vendo-a rolar invariavelmente para baixo, Sísifo encontra a sua vitória no momento da descida. Naquele breve intervalo, livre do peso da rocha, ao olhar a sua tortura de frente, com desprezo e lucidez, torna-se superior a ela. “É preciso imaginar Sísifo feliz”, conclui Camus.

É uma ideia bela, quase uma oração secular pela dignidade humana. Mas será esta felicidade, encontrada na consciência da própria ausência de esperança, focada no presente, liberdade? Poderá apenas a mais sofisticada das prisões, a prisão do cativo,  levar a aprender o amor pelas suas próprias grades?

A liberdade não deve ser apenas um valor imaterial, uma atitude interior. Se assim for, corre o risco de se tornar numa ilusão de virtude, uma forma de auto-engano tornando-nos escravos das nossas condicionantes enquanto nos felicitamos pela nossa força interior. Isto hoje acontece. Esta imagem do Sísifo feliz e resignado é, talvez, a ideal para a sociedade do século XXI. Ensinam-nos a aceitar, a ser resilientes, a encontrar alegria nas pequenas coisas, enquanto empurramos as nossas rochas diárias em trabalhos repetitivos e sistemas estanques. Não os podemos mudar. O sorriso de Sísifo, vitorioso apenas para ele, é o sorriso do autómato perfeito. Para os Deuses, a observar de longe, o espectáculo é o de uma obediência exemplar. A pedra continua a ser empurrada.

Para entender os limites desta liberdade interior, talvez tenhamos de sair da mitologia e entrar na brutalidade da História. Em “A Comissão das Lágrimas”, António Lobo Antunes mergulha-nos no trauma da Guerra Colonial Portuguesa, um universo de memórias fragmentadas e de uma violência perene na memória do tempo. Puxemos uma cadeira neste cenário destruidor para nos sentarmos ao lado de Virinha, uma mulher torturada pela PIDE/DGS devido ao seu envolvimento com os movimentos de independência em Angola (MPLA). O seu corpo é subjugado, a sua liberdade exterior é aniquilada. Acto após acto de tortura, ela faz algo impensável. Elvira canta.

O que acontece, de facto, neste canto? É um acto de imensa liberdade, a última trincheira da sua humanidade onde os torturadores não conseguem tocar. O canto contudo não pára a dor, não parte as correntes. A sua liberdade interior, por mais absoluta, existe em paralelo com a sua total subjugação física. Virinha é a versão humana e trágica de Sísifo. O seu canto, tal como o sorriso de Sísifo, é a afirmação de um Eu em recusa a ser destruído. Mas a realidade da opressão permanece intocada.

Precisamos aqui questionar a premissa de Camus. Uma atitude tão radical perante o sofrimento requer, ou não, um acto de fé? Basta-se o presente? Não fé em Deus, necessariamente, mas uma fé radical na dignidade humana, um valor quase transcendente, porque não há já aqui uma noção palpável de presente, antes uma eternidade eminente na condição humana, o tempo esfarela-se. Camus evita a palavra, mas a energia motriz de Virinha e Sísifo é a de quem acredita em algo para além da sua condição material. Se imaginamos somente um Sísifo feliz, talvez se imagine apenas um parvo ou, pelo menos, uma não componente do real.

Por isso a verdadeira liberdade não estará nesta espécie de efabulação do sorriso de Sísifo, mas no seu oposto. Tenho para mim, a ser isso a liberdade, mais valer sê-lo com algum grau de infelicidade. A infelicidade honesta, a raiva, a frustração de quem empurra a rocha e se recusa a sorrir, é este o sinal de uma rendição ainda não instalada. Melhor, ele não podia mas nós podemos, não empurremos a rocha e então esbocemos um sorriso! Cantemos como a Virinha, cada vez mais alto. É a prova da possibilidade de uma outra realidade, uma onde a rocha é destruída, não apenas aceite.

A sociedade apreendeu bem a chave para a liberdade do indivíduo, vende-nos a felicidade de Sísifo como meta. O seu sorriso, lembremos, é um acto privado, uma vitória silenciosa reconfortante para o indivíduo sem nunca ameaçar os Deuses. O canto de Virinha, pelo contrário, é um acto público. É um som invasor do espaço do torturador, força o confronto com o apagamento da humanidade. O verdadeiro acto de liberdade não passará assim por convencer-mo-nos do absurdo,  afinal não somos felizes na nossa condição. Forcemos o mundo a ouvir o nosso canto de dor. O som enquanto prova, apesar de tudo, de ainda não sermos a pedra, carregada pela falta de futuro. Talvez o absurdo não resolva algo.

Leituras: Abril 2024

Maio 30, 2024

Quase Maio terminado e reparo não ter registado nada sobre as leituras de Abril. Fica tardiamente o registo, para ter uma espécie de consistência fingida a não falhar. Em Abril terminei 5 leituras e como já está a ser costume este ano a maior parte muito satisfatórias.

Terminei o "Wolf Solent" de John Cowper Powys, o ritmo era lento mas lento também eu fui, entretanto já comprei dois livros seus de ensaios. Reli o "Way Station" do Clifford D. Symak, continua a ser dos meus livros de ficção científica preferidos, talvez pela ternura na escrita de Symak, um livro para mim tido como de trato humano e por isso iluminado. "Fogo Pálido" de Nabokov foi provavelmente a melhor leitura do mês, com certeza uma das melhores do ano, este livro é uma autêntica aula sobre o potencial da boa literatura. "O Homem Que Era Quinta-feira" do Chesterton também foi uma surpresa maravilhosa, não contava com um livro de linhas místicas, podia ser estranho, e é, ainda mais se associado a política roçar o bizarro, e roça, mas funcionou muito bem, uma narrativa a determinada altura alucinante. Não sendo semelhantes associo este livro ao "A Revolta dos Anjos" do Anatole France daria um exercício giro relacionar ambos de alguma forma. Por fim, "Zen in the Art of Writing" do Ray Bradbury, um livro querido, gosto do Bradbury e da forma descontraída como fala do ofício da escrita, ainda mais por utilizar clickbait (na verdade um readbait) num título antes de isso ainda ser uma coisa e de o explicar e usar como mote para o último ensaio do livro.

Abril foi um óptimo mês de leituras, daqui a nada volto com o Maio e, gostava eu, com todos os posts da minha mente, por mim ignorados e em espera de escrita. 

Leituras: Março 2024

Março 31, 2024

Este foi um mês muito lento em leituras. Reli o "Persuasão" da Jane Austen, experiência já descrita, e presentemente estou prestes a terminar o "Wolf Solent" do John Cowper Powys, um romance de fôlego com mais de 600 páginas. Ainda não tinha lido John Cowper Powys, esta vontade veio há alguns anos após alguns ensaios de George Steiner, motivado pelos largos elogios e da admiração de Henri Miller pela obra e escritor. Se a mente não me engana ambos destacam o seu "Autobiografia", gosto particularmente de biografias e portanto tenho a aquisição em inglês em vista antes se esgoste. Entendendo-os agora aos dois espero terminar esta grande e lenta leitura durante esta semana. Foi assim Março em leituras, óptimo porque mais lento e  interior, diferente da aceleração vertiginosa assistida online.

Para Abril há umas três leituras já programadas e terminando "Wolf Solent" a ver se recupero o meu ritmo normal, porque Powys foi uma chicotada no meu pensar durante a leitura, falo depois destas peculiaridades quando o terminar.

Persuasão: Jane Austen Revisitada

Março 08, 2024

Até hoje li três romances de Jane Austen e embora considere "Mansfield Park" o mais bem estruturado, "Persuasão" conquistou um lugar especial por alguns motivos a destacar. Há 9 anos percebi que o havia lido de forma leviana, sem lhe dar o devido valor, e confirmei-o na sua releitura.

Os romances de Jane Austen são conhecidos pela sua ironia aplicada aos temas sociais. No entanto em "Persuasão" achei esta característica mais subtil e arguta do que a mais óbvia, diria fácil, de "Orgulho e Preconceito". Em comparação com Elizabeth Bennet em "Orgulho e Preconceito", a Anne Elliot de "Persuasão" é uma protagonista mais madura e introspectiva. Além de reflectir sobre suas escolhas passadas mostra um crescimento pessoal significativo ao longo do romance. Fanny Price em "Mansfield Park" dá-nos um belo reconto da Cinderela, possui um arco mais semelhante ao de Anne, mas sendo mais nova diria-a ficar ainda aquém da vida. Anne Elliot de alguma forma transpõe uma barreira e coloca-se numa posição onde a felicidade não é um lugar confortável ou feliz.

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“I hate to hear you talk about all women as if they were fine ladies instead of rational creatures. None of us want to be in calm waters all our lives.”

Em "Orgulho e Preconceito" e "Mansfield Park" notei uma diversidade de personagens secundárias a desempenharem papéis significativos na trama. Por sua vez "Persuasão" tende a fixar-se na jornada e desenvolvimento das personagens principais. As personagens secundárias servem para complementar a narrativa, adicionam à contenção do romance até ao seu desenlace final.

Na leitura de "Mansfield Park" vi um romance mais direccionado para a ruralidade. A acção centra-se numa propriedade rural inglesa. "Persuasão" é um livro de visões mais amplas, de exterior. Destaca-se pelas cenas costeiras e atmosfera marítima. A ambientação à beira-mar contribui para o tom melancólico e romântico do livro e, à semelhança de "Mansfield Park", já traz algo da posterior Virgínia Woolf com ele, características de Austen que não identifico com facilidade em "Orgulho e Preconceito".

"Orgulho e Preconceito" atenta nas primeiras impressões, na superação de preconceitos iniciais. Assuntos por ventura mais apelativos para quem ainda vive fases mais precoces da vida, onde essas mesmas situações são as mais determinantes da vivência. "Persuasão" destaca-se pela análise da segunda oportunidade, é um livro de espera. O romance explora como Anne Elliot e o Capitão Wentworth se reencontram e têm a oportunidade de reavivar um romance deixado de lado no passado por interferências, a persuasão e o ser persuadido que interrompem um vínculo natural para aqueles seres.

A maneira como Jane Austen descreve as emoções das personagens, as complexidades dos seus relacionamentos ressoa comigo enquanto leitor. Muitas vezes evoca uma sensação de nostalgia ou reflexão sobre as minhas próprias experiências, que, não sendo semelhantes, entendem-se em espaços comuns. "Persuasão" é um livro de uma maturidade que me exigia mais vida há 9 anos. Tem essa capacidade rara de evocar sentimentos indefiníveis, como uma espécie de melancolia feliz ou uma agridoce agonia. É um livro onde pela mestria da escrita as peças não existem, elas já se misturaram completamente e o romance propõe-se à vida como ela é.

Quero ler os livros de Jane Austen que ainda não li e constatar no todo a versatilidade desta mulher. Em três livros lidos, todos eles são distintos e propostas literárias interessantes. Curiosamente para mim, o favorito será o "Mansfield Park" a par com "Persuasão", não consigo ainda definir e, por fim, o aclamado "Orgulho e Preconceito", favorito para a maioria talvez pela tangibilidade na ironia e comédia, concreto em ter uma história. "Persuasão" é um livro de tremura em minúsculas fímbrias, dir-se-ia um livro de final feliz, mas isso é redutor, já falei disso no post O paradoxo da escrita simples, tão redutor como dizer: "Jane Austen limitou-se a escrever romances de água com açúcar."

Leituras: Fevereiro 2024

Março 04, 2024

Resumo mensal de leituras, algo a fazer aqui mais vezes a partir de agora, espero eu. Em Fevereiro acabei por ler mais do que contava. Decidi este ano voltar a definir listas de leitura mensais, parte delas ainda lidas em Janeiro, com o objetivo de incluir 'Estilhaços' do Bret Easton Ellis ainda no mês. Com jeito e regularidade nas leituras consegui acabar o Ellis e ainda adiantar uma leitura de Março e terminar o "Confissões" de Santo Agostinho.

"A Confissão de Lúcio" de Mário de Sá-Carneiro foi uma das doze releituras definidas para 2024 e correu muito bem. Continuo a achar uma novela notável, das melhores escritas na nossa língua, labiríntica reflexiva, com caminhos e sugestões sem nunca se comprometer com uma verdade. Lembra-me de alguma forma Fitzgerald, um favorito a ler mais vezes. 

Depois li "Butcher's Crossing" por sugestão do Hugo. Gostei de "Stoner" mas recusei-me à maluquice e reconhecimento dados a este romance do John Williams, devo dizer de "Butcher's Crossing" um livro mais complexo, a ir beber a "Moby Dick" e a um "Walden", gostei bastante, apesar de ainda achar que John Williams não é um escritor a ficar na minha lista de favoritos. Acabei por ficar surpreendido ao ponto de querer ler "Augustus".

Não sabia da adaptação de 'O Problema dos Três Corpos' na Netflix, esta leitura veio muito a calhar. Como quero fazer do blog um lugar de memória e central, vou transcrever a minha opinião resumida deixada num story:  Achei o livro muito bom, com alguns pontos não verosímeis ou preguiçosos. No livro entramos em contacto com extraterrestres mais desenvolvidos, torna-se assim estranho sermos nós a chegar lá primeiro e não o contrário,  sendo mais fácil acontecer como se processa na narrativa, apesar disto gostei muito da ideia de um aviso amigável que acontece. Pelo final o Liu Cixin encontra um artifício muito simples para explicar ao leitor todos os detalhes necessários, detalhes estes envolvidos em pouco ou nenhum enredo e pareceu-me preguiçoso. A alteração do discurso narrativo é muito boa, um texto mais frio e seco, sem os lirismos de outras partes que tanto apreciei. Preciso agora do "A Floresta Sombria", gostei também de este primeiro livro já estar escrito com pelo menos a ideia do segundo em vista. Agora espero pela adaptação.

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Finalmente tendo estes lidos, fui para o "Estilhaços" do Bret Easton Ellis. Não acho-o o melhor dos escritores contemporâneos, ou literariamente elevado, mas junto este livro a "Psicopata Americano" ao dizer que Ellis é literariamente relevante por quão icónico consegue ser. Este livro em particular, achei-o bom, lembrou-me de alguma forma "Lolita" do Nabokov, em como trabalhar determinado recurso. Nas suas mais de 600 páginas nunca me aborreceu, mesmo sendo provavelmente para muitos aborrecido. Bret é um jovem a terminar o secundário que anseia ser escritor, vive os seus dias de adolescência com os amigos, a sua namorada e os rapazes com que vai tendo casos frugais. Um desses rapazes torna-se pedra de toque do romance, e uma camada, talvez para mim a mais interessante de todo o romance, a camada psicológica que acrescenta e à qual o Bret resistiu a explicar-se. Por último consegui continuar a leitura do "Confissões", já fiz aqui um breve lembrete sobre o livro, não me alongo. Fiquei feliz por terminar uma leitura que adorei e estava de alguma forma a negligenciar.

Para terminar o post, das estatísticas de Fevereiro posso dizer que sem a batota dos livros adiantados em Janeiro, não foram assim tão boas. Li dois livros completos (Liu Cixin e Bret Easton Ellis) e 1279 páginas, enquanto em Janeiro já havia lido 8 livros e 1732 páginas. Vamos lá ver como corre Março! 

 

 

Sobre

21aafb00b84d1f9249b0b9a10481d2f3.pngO blog enquanto página pessoal tem como objectivo trazer um registo da vida que se insurge à correria do dia a dia, intervalos no intervalo. O "breve intervalo" surge como pausa, reflexão e memória do não empregue nos meus cadernos. Ao fim, essa outra vida trivial: a das opiniões, dos passeios, do não se querer esquecer e manter em permanente rascunho.

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