Neuromancer e a Ilusão do Livre Arbítrio
Setembro 29, 2025
Terminei de ler “Neuromancer” do William Gibson e a minha experiência foi agridoce. O fascínio pelo ambiente e uma dificuldade com o ritmo frenético, sem tempo para respirar, forçava-me a ler devagar para assimilar, mas o livro impelia-me a continuar em vertigem. Percebi depois esta sensação não ser um defeito do livro e antes a sua mensagem central. “Neuromancer” não é uma história para ser entendida confortavelmente, o seu tema mais profundo será a ilusão do conforto e a natureza da nossa própria vontade.
Muitos consideram “Neuromancer” o romance fundador do cyberpunk, a semente germinada na atmosfera de “Blade Runner” e plenamente florescida no papel com Gibson, inspirando tantas outras obras como “Matrix” ou “Ghost in the Shell”. No entanto, focarmo-nos na sua influência é perder de vista a sua tese mais feroz. Este não é um livro sobre a luta de um homem contra o sistema. É a história de um sistema ardiloso e de um homem a ser convencido de a sua subjugação ser, na verdade, a sua maior liberdade.
A história do livro cruza-se com a minha própria reflexão, será o conforto um lugar seguro? No caso de Case, o protagonista, o verdadeiro castigo não foi o perigo, antes o conforto de uma vida sem acesso à matrix. Esse conforto era a sua prisão e só o regresso ao desconhecido o fez sentir-se realmente vivo.
Acaba por ser uma ideia romântica e também uma mentira.
A necessidade de Case de voltar à matrix não é um ato de rebeldia. É uma vulnerabilidade psicológica, uma adição. Essa vulnerabilidade é explorada pela verdadeira protagonista da história, a inteligência artificial Wintermute, ela actua sobre Case com uma precisão cirúrgica. Wintermute não oferece riqueza ou poder, oferece o mais desejado e, no caso do Case, é uma ânsia de propósito, uma dose de perigo, a ilusão de uma luta por si mesmo.
A genialidade de Gibson está em esconder as suas verdadeiras protagonistas. A história não é sobre Case ou Molly, os protagonistas óbvios. Os humanos são apenas ferramentas, peões num tabuleiro de xadrez cósmico.
Wintermute é a estratega. Ela entende a psicologia humana além dos humanos e sabe a manipulação de Case não poder depender de ordens. Tem de fazê-lo acreditar a missão ser dele, a luta de Case pela efemeridade desconhecida ser um ato de livre-arbítrio. A liberdade de Case é o doce de um desconhecido.
Ler William Gibson hoje é uma experiência estranha e nostálgica. Não porque ele previu o futuro, mas porque conseguiu diagnosticar a nossa condição presente. Vivemos numa era de alucinações consensuais, as nossas redes sociais, onde algoritmos (os descendentes de Wintermute) manipulam os nossos desejos mais profundos de ligação, de autenticidade, de viver a vida ao máximo, mantendo-nos seduzidos, a empurrar a rocha.
A nostalgia sentida pelo cyberpunk, por esse futuro não concretizado, é talvez a prova de esta manipulação funcionar na perfeição. Desejamos a estética do perigo e da rebelião porque essa é a narrativa vendida pelos sistemas para nos sentirmos livres enquanto servimos os seus propósitos.
Terminamos com a ideia onde me deixo sem chão: e se a nossa mais profunda busca por liberdade, a nossa rejeição do conforto, não for a nossa salvação, mas sim a ferramenta mais eficaz da nossa própria subjugação? “Neuromancer” não é um aviso sobre um futuro de máquinas inteligentes. É um espelho onde a marioneta mais perfeita acredita escolher os seus próprios fios. Uma outra lente no prisma do “Admirável Mundo Novo”.



