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E fez da vida ao fim…

breve intervalo

E fez da vida ao fim…

Num exercício de esforço para tentar manter o blog lembrei-me de falar de uma surpresa literária do ano passado. O título deste texto seria "Rilke mas não rilkou", entretanto algo mais lato surgiu-me. Não serão só as cartas do Rainer Maria Rilke ao jovem Franz Xaver Kappus, o pequeno poeta, a sofrer por certo com erros de percepção ou magias editoriais.

Li pela primeira vez o "Letters to a Young Poet" em 2019 num mês de verão diria, atiro para Julho. Na altura fiquei fascinado pelas cartas do Rilke ao jovem rapaz. Não eram estas só uma espécie de manual para a arte, para estar na vida. Eram uma luz numa mente (a minha) naturalmente com tendências para a escuridão. Enquanto lia o livro o fascínio levou-me a partilhar no instagram o quão maravilhosa estava a ser a experiência de leitura e algo estranho aconteceu. Não estando eu habituado, porque jamais me habituarei, à maluquice das massas humanas nas redes sociais, eis alguém a ver-me ler o livro, digo nas massas mas na verdade foi só uma pessoa, entra em contacto comigo e diz ir lê-lo comigo. Petrifiquei e pensei, comigo? Como é isto de se ler assim comigo? Só aceitei, sorri acenei e continuei a ler como sempre li, sozinho. Terminei o livro e a magia permanecia. Estava encantado pelas palavras de Rilke, da esperança entregue, onde de alguma forma me era dito nada ser vão, mesmo a escuridão, solidão.

Passaram meses e soube de uma nova edição do livro onde estariam incluídas as cartas do jovem poeta. Não só as cartas do Franz Kappus, mas também uma suposta carta apagada. Ainda hoje não sei porque as pessoas se impigem em leituras alheias. Solidão talvez, artes menos óbvias de insurgimento na vida alheia. Brincam com os livros e as leituras não como as crianças brincam, antes adultos falhos no crescer. Se é belo existirem crianças já crescidas, adultos pueris surgem-me assustadores. A pessoa continua com essa peculiar forma de estar, felizmente afastou-se naturalmente sem nada ter de dizer, fazer. Os ventos da internet. No ano passado lá comprei esta nova edição das cartas. Achava estar a adquirir um livro onde a entrega do encantamento seria exponencial, isto pela desculpa da reciprocidade da correspondência. Já Eça nos dizia falharmos a vida pensada com a imaginação. Se achamos algo invarialmente assim a vida dará algo de distinto. A releitura não correu como o esperado. Cartas a um Jovem Poeta

Eis Junho de 2022 e eu a reler a nova edição (visível na fotografia deste texto). À medida da leitura articulava as cartas do jovem rapaz com as de Rilke e começo a entender sentidos anteriormente vedados pela falta das cartas do rapaz. As cartas do Rilke não perderam valor, antes as do rapaz não acrescentaram algo ao dito pelo poeta. Diminuiram até a amplitude de algumas ideias antes não direccionadas. Kappus não me pareceu um jovem particularmente inocente, ou melhor, desinteressadamente interessado em Rilke. Por consequência a perda da amplitude vaga e magia das respostas de Rilke, agora no particular deste rapaz, ganhou em realidade a leitura. Se ambas as edições entregam ao leitor não ficção, numa há um quimerismo ficcional, na outra este é preenchido por um lugar mais telúrico. Rilke não escrevia para uma espécie de versão imatura de si mesmo, aqui percebemos o importante. O rapaz ajuda-nos a situar Rilke no tempo, no espaço e atribui uma fricção real aos textos da edição sem as suas cartas.

O "Letters to a Young Poet" agrega admiração de nomes vários ao longo dos tempos: Marylin Monroe, Konrad Zuse, Dustin Hoffman ou até mesmo a tatuagem de Lady Gaga. Os editores sabiam nesta nova edição um outro livro. Um outro livro que Franz Kappus proporcionou e assim, de forma querida, mantiveram as cartas de Rilke agregadas. Quem quiser ler as do rapaz só tem de ir alternando entre páginas e intercalando. Uma experiência mais real, entendedora do poeta e sem negar a magia da unilateralidade das cartas de Rilke sozinhas, enquanto unidade não ficional ficcionada.

Quantas vezes a vontade de criar, articular pensamentos, emoções, ordenar vários pedaços de caos diário numa forma maior. Um luxo particular no tempo a dedicar a isso, um luxo doente de difícil compreensão, um luxo feliz nessa mesma necessidade de querer sucumbir. O medo de ainda não estar pronto um travão ético, porque há atitudes levianas. Temos uma leviandade latente e não nos questionamos sobre ela. Levianos a escrever, a partilhar, a viver. Queria um breve intervalo público, um sítio só meu e só, onde sem me esconder não avisto, não avisto e eu feliz numa fervura de quotidiano onde fermento de inutilidade, onde o espaço só basta-se e assim, borbulhante, feliz. Por vezes poemas de ímpeto agarram-se ao papel, outras vezes imaterializam-se, e acredito nessa minha perda a resposta aos enigmas do universo.

 

Em tempos de pandemia tinha criado um blog (mais um) e cedo ficou ao abandono. Por minha culpa, tão grande culpa, não me articulo entre tudo o que tenho, quero e preciso fazer.

Gostava de prometer em breve intervalo a diferença, conseguir ocupar em mais uma forma esse fez da vida ao fim. Se a voz da Sophia não me protegeu o blog anterior, não será a de Camões que melhor o fará. Se o não somos daqui partiu, este blog já faz jus ao seu título, interrompe-se, e promete ainda falar das férias da semana passada e da minha experiência de leitura com Steinbeck, escritor que me tem surpreendido cada vez mais. Terminei ontem o seu "Chama Devoradora". 

Vou tendo o ócio como desnecessário, cada vez mais se me afigura uma doença que quebra espaço para a utilidade dos espaços vazios. Aos doentes crónicos, aos sofredores de breves surtos, sofre-se dele a quatro patas.

Apesar de os seus estilos literários serem diferentes os dois escritores dos meus últimos livros lidos demonstram uma habilidade notável para criar personagens e ambientes realistas de forma expressiva e evocativa. Através de imagens vívidas de uma ideia sobre sociedade portuguesa, em épocas diferentes, aplicam elementos culturais comuns: o nosso conservadorismo, hospitalidade, até mesmo uma éspecie de Fado (esta ideia, a desenvolvê-la, desviar-me-ia do assunto deste texto). Embora não contemporâneos e distintos entre si, Júlio Dinis e José Cardoso Pires têm em comum o facto de serem escritores portugueses empenhados nos temas sociais e políticos inseridos nas suas obras, recorrendo a um estilo único e simples.

Seja a retratar a vida rural de Portugal do século XIX ou as tensões políticas da ditadura salazarista no século XX, os dois escritores fazem literatura ao dar voz a marginalizados e oprimidos pela denuncia de variadas injustiças sociais. A simplicidade das narrativas de Júlio Dinis e José Cardoso Pires pode ser uma característica comum, mas isto não implica uma facilidade em escrever de forma clara, concisa, e ainda assim ter uma voz distinta. Nestes contornos torna-se paradoxal a elementaridade da escrita destes escritores, pois ela existe em cada um associada a um estilo único. Esta simplicidade narrativa, para mim não existente, dá uma ideia de facilidade, mas na verdade são formas de escrita altamente sofisticadas, e requerem um elevado nível de trabalho e talento para serem bem-sucedidas.IMG_6112.jpeg

O domínio da língua, bem como um entendimento do assunto sobre o qual escrevem torna-se essencial e isto parece-me surgir à custa do talento muito específico de trabalharem imenso. Ambos o faziam. É preciso escolher a palavra certa, construir coerência e criar ritmos agradáveis, tudo isto enquanto há clareza, precisão e muitas vezes com mais de um sentido inerente. Neste espaço comum da simplicidade acontece muitos leitores acabarem por subestimar a dificuldade de se escrever de forma articulada e simples. Aprecia-se o texto pela sua epiderme e isto surge-me redutor, ou entrega-se esses escritores ao esquecimento por se acharem datados ou menores. A facilidade das opiniões de leitura hoje debitadas dizem muito mais dos leitores, não tanto do trabalho do escritor. Contudo vemos o trabalho sério deste último na faca pela leitura frívola, exercida apenas na tangibilidade do prazer imediato não só do livro, mas também da rede social. Não precisamos de tempo para ler melhor, precisamos apenas de o fazer.

Assim, José Cardoso Pires parece-me surgir como uma sombra imaterializada do homem vencedor do Nobel, agora chamam-lhe mestre. Júlio Dinis pecou por não ser Camilo ou Eça ,e arrisco a dizer só se 'entender' Eça. Daqui decorre não somente a perda de cultura, perde-se literatura por si só não abundante. Há uma falta de espaço porque ocupado por esse caudal maior onde o resto tem de funcionar como menor até secar. O paradoxo da escrita simples surge-me da aparente contradição entre a simplicidade e a dificuldade de alcançá-la com eficácia, dos mecanismos de entrega onde a maioria não tira proveito na leitura. Há os escritores para estúpidos e outros não lêem escritores interiorizados como fazê-los passar por tal. Há formas de escrita de uma simplicidade árdua, e estes dois escritores para o seu mal talvez o tenham feito bem demais.

No último domingo dia 23 era para ter ido a Viana do Castelo, contudo acabamos à última por trocar o norte pelo centro e ir até  Coimbra. De Coimbra gosto particularmente da Universidade, um local histórico e impressionante que data do século XIII. Estudar neste ambiente conimbricense será mágico, ao contrário do Porto onde estudei, pelo menos na minha perspectiva. Pela hora do almoço o passeio pela cidade levou-nos a um pequeno restaurante italiano perto da Sé antiga, o Italianino, do qual saímos a rebolar! A comida estava deliciosa e o ambiente era acolhedor e relaxante. 

Depois do almoço (e de forma não programada) o dia continuou em Conimbriga, datada pelo menos desde a idade do bronze e posteriormente uma das maiores e mais bem preservadas cidades romanas em Portugal. Visitamos a sua estação arqueológica onde também se situa o Museu Monográfico de Conimbriga. É incrível a quantidade de história e beleza deste local em Condeixa-a-nova. Vim embora com uma nostalgia estranha, talvez aquela que o George Steiner refere, a do absoluto.

 

Ao olhar para o passado conseguimos absorver a realidade de forma condensada e maquilhada, até nas tristes lápides em que estendia o olhar encontrava uma firme beleza. Talvez seja o facto de nunca ter contactado com uma realidade destas além dos livros, documentários ou filmes. Há nesta minha experiência uma concretização de finitude e passado. Ainda muito poderia escrever sobre o que vi em Conimbriga mas a preguiça e a ferrugem nas andanças de um blog levam-me a terminar o post em breve.

Ao voltar para casa houve ainda tempo para visitar o Buçaco na freguesia do Luso e apreciar a vista deslumbrante da serra. Na mata nacional do Buçaco, vimos o Palace Hotel do Buçaco, a irradiar ares de Regaleira, e também o convento de Santa Cruz do Buçaco. Caminhou-se até ao topo da serra, a vista panorâmica da região é de tirar o fôlego e definitivamente vale a pena a subida. 

 Estes passeios acabam por me trazer algum real em intervalos de dias artificiais. A ida a Conimbriga já foi como um aperitivo  para as férias que se aproximam!

Sobre

21aafb00b84d1f9249b0b9a10481d2f3.pngO blog enquanto página pessoal tem como objectivo trazer um registo da vida que se insurge à correria do dia a dia, intervalos no intervalo. O "breve intervalo" surge como pausa, reflexão e memória do não empregue nos meus cadernos. Ao fim, essa outra vida trivial: a das opiniões, dos passeios, do não se querer esquecer e manter em permanente rascunho.

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