Em Queda Livre: Liberdade é Aceitar a Culpa
Agosto 19, 2025
Durante muitos anos pertenci ao clube "O Deus das Moscas". Um clube informal, mais ou menos instituído, onde o livro é tido como uma das leituras obrigatórias, quase um rito de passagem. Isto poderia enaltecer o seu autor, mas acaba por relegar a sua importância. Alguém quer saber do William Golding? Para uma grande parte Golding nada mais escreveu. É esta uma das muitas injustiças do universo literário. Como pode um autor laureado com o Prémio Nobel em 1983 ficar prisioneiro da sua obra de estreia? A Academia Sueca justificou o prémio pelos seus romances “com a perspicácia da arte narrativa realista e a diversidade e universalidade do mito, iluminam a condição humana no mundo de hoje”. No seu discurso, Golding falou dos "monstros" não em terras longínquas, mas dentro de nós. Todos estes motivos levaram-me a querer procurar o autor para além da ilha. A minha viagem começou com outro título disponível em Portugal. Ler "O Pináculo" foi uma surpresa imediata. Se "O Deus das Moscas" (1954) é sobre a escuridão emergente da ausência de regras num grupo, "O Pináculo" (1964) trata a escuridão residente na fé cega e obsessão de um único homem. A escala mudava, mas o objeto de estudo era o mesmo. Agora, terminado o "Em Queda Livre" (1959), a perspetiva é ainda outra. Este romance trata uma investigação à escuridão na memória e culpa de um indivíduo. O fio unificador destes romances tão diferentes é a obsessão de Golding em fazer uma autópsia à alma humana. Nestes três livros ele isola os seus personagens, seja numa ilha, catedral ou numa cela de prisão e tendo-os no isolamento, disseca a origem da falha, do mal. É no "Em Queda Livre" onde a investigação surge mais íntima e, talvez por isso, mais brutal. A narrativa começa numa cela escura. Samuel Mountjoy, um artista britânico e prisioneiro de guerra, é confrontado com o terror do aniquilamento. A cela escura onde Sammy é aprisionado não é apenas uma metáfora. O próprio William Golding viveu uma experiência de confinamento aterradora durante a guerra, dando a esta cena de abertura o peso de uma memória real, lembra de alguma forma a experiência aterradora de Dostoiévski, e de como momentos determinantes destes podem resgatar o ser humano para escrutínios sobre o normalmente insondável. Eu próprio uma certa noite tive um episódio onde me achava consciente, não sabia contudo onde estava, essa espécie de sonho acordado levou-me a uma das experiências mais aterradoras, andar à deriva na escuridão. O surgimento de uma busca desesperada no livro dá-se neste ponto de liberdade física nula. Busca pela liberdade espiritual perdida e pela pergunta assombrosa de todo o romance: "Em que momento exato perdi a minha liberdade?". Para Golding a resposta parece estar na guerra civil travada dentro de nós, uma luta entre dois mundos. O primeiro é o mundo da inocência, do espírito, do mistério. "Em Queda Livre", este mundo é simbolizado pela personagem Beatrice, um ideal de pureza admirado por Sammy, incapaz de o compreender. É o paraíso perdido da infância, um estado de graça. O segundo é o mundo da matéria. O mundo da ciência, da lógica, da ambição e crueldade. É neste mundo onde Sammy faz as suas escolhas. Aqui ele adere ao comunismo, não tanto por convicção política, mas por uma necessidade metafísica. A ideologia materialista oferecia-lhe um refúgio, um sistema negacionista da existência do mundo espiritual onde a sua culpa e o seu pecado tinham um significado real. A sua crueldade calculada para com Beatrice é uma manifestação desta escolha, a aniquilação da inocência do outro em nome do seu próprio ego. O crítico John Carey explica a crueldade de Sammy para com Beatrice não ser um ato de paixão, surge antes como um ato frio e deliberado de um racionalista. Esta interpretação de Carey ilumina a dimensão filosófica tecida por Golding em todo o romance. Sammy quer ‘dissecar’ Beatrice, entendê-la como um objeto de estudo, e ao fazê-lo, destrói-lhe o mistério e a inocência. A prisão de Sammy não é, contudo, apenas a cela alemã. A verdadeira prisão está na sua própria memória. Esta luta entre o mundo da matéria e do espírito não é apenas uma ficção, reflete a própria jornada do escritor, como explica John Carey, Golding passou de um cepticismo racionalista para a crença num universo com uma dimensão espiritual. A estrutura caótica e não-linear do livro é o reflexo de uma consciência em sofrimento, perdida num labirinto de culpas, incapaz de encontrar uma linha reta justificativa para quem se tornou. A cela física é um espelho da cela mental construída ao longo da vida. Chegamos assim à resposta vertiginosa da sua investigação.
"Em que momento exato perdi a minha liberdade?"
Ao contrário do esperado, não houve um único momento para a queda. Não houve uma única escolha determinante do seu destino. A verdadeira queda não foi um evento dramático, mas sim o culminar de várias pequenas decisões, de momentos onde a porta ao mistério foi fechada para apenas abraçar a lógica. Escolheu o ego em vez da empatia. A liberdade não se perdeu de uma só vez, lentamente ela foi vendida. Num momento de desespero extremo, Samuel perde o autocontrolo, grita e implora por ajuda. No auge da sua angústia todas as suas memórias, culpas e arrependimentos parecem colapsar sobre si. O final é de uma ironia existencial magistral. John Carey argumenta, para Golding, a verdadeira liberdade não ser a ausência de restrições, antes o reconhecimento da responsabilidade pelas nossas escolhas, mesmo sem compreender totalmente as suas forças motrizes. "Em Queda Livre" revela uma verdade indisponível a "O Deus das Moscas". A ilha mostra o mal nascido da ausência de regras. Esta queda livre expõe um mal muito mais subtil, nascido das regras criadas por nós para justificar as nossas falhas. Liberdade é aceitar a culpa.

