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E fez da vida ao fim…

breve intervalo

E fez da vida ao fim…

Este foi um mês muito lento em leituras. Reli o "Persuasão" da Jane Austen, experiência já descrita, e presentemente estou prestes a terminar o "Wolf Solent" do John Cowper Powys, um romance de fôlego com mais de 600 páginas. Ainda não tinha lido John Cowper Powys, esta vontade veio há alguns anos após alguns ensaios de George Steiner, motivado pelos largos elogios e da admiração de Henri Miller pela obra e escritor. Se a mente não me engana ambos destacam o seu "Autobiografia", gosto particularmente de biografias e portanto tenho a aquisição em inglês em vista antes se esgoste. Entendendo-os agora aos dois espero terminar esta grande e lenta leitura durante esta semana. Foi assim Março em leituras, óptimo porque mais lento e  interior, diferente da aceleração vertiginosa assistida online.

Para Abril há umas três leituras já programadas e terminando "Wolf Solent" a ver se recupero o meu ritmo normal, porque Powys foi uma chicotada na meu pensar durante a leitura, falo depois destas peculiaridades quando o terminar.

No tempo do streaming e das playlists ainda há algo especial na nostalgia das mixtapes. Estas não eram apenas uma colecção de músicas, passavam pela expressão de sentimentos e gostos musicais, uma forma de comunicação. Embora nunca tenha trocado mixtapes adorava criá-las, enredar músicas, entrançar estilos e sonoridades, ter uma selecção final pessoal, fosse ela com um género, uma ideia, uma narrativa ou sentimentos. Cheguei a fazê-lo em CD, em pequeno ainda apanhei cassetes e, mais tarde, as playlists; até brinquei mais além e fazia umas edições e misturas no computador. O conceito pressupunha em cada mixtape algo de único. A nostalgia vem não só do acto de selecção, mas também da experiência tangível de criar e compartilhar algo nosso. Era uma forma de curadoria pessoal numa época em que a descoberta de novas músicas dependia de recomendações de amigos, da rádio ou de lojas. Embora as mixtapes tenham sido substituídas pelas playlists digitais, o encanto de uma compilação feita à mão e a emoção de receber uma mixtape de alguém querido ainda permanecem vivos na memória de quem as viveu, evocando uma era em que a música era compartilhada de forma mais íntima.

Sigo assim o conceito dessa memória e inauguro a mixtape oficial aqui do site, playlist travestida de mixtape porque quer-se partilhada com os que por aqui pousam. É homónima do site, "Breve Intervalo", e o primeiro episódio chamei-lhe "Visions of Waiting". Tentarei articular mais sobre cada uma das mixtapes nos posts posteriores. Aqui serei breve pois o post vai longo. Para já em playlist do Youtube, a ver se entretanto defino melhor a plataforma a utilizar. Esta primeira selecção conta com 8 músicas, quis atravessar estilos e tocar não só uma década de música, ir ao cinema, livros e esse mecanismo das esperas, uma forma de solidão. Não revelo as escolhas e a ordem, para não estragar a surpresa. A quem possa ouvir e gostar.

 

A Haruki entretanto cresceu bastante, estamos a preparar a esterilização. Os primeiros meses foram complicados e se por um lado há uma alegria imensa em ter uma gata esperta e mexida, por outro só desejamos a maturidade da idade adulta para ela abrandar o ritmo das traquinices! Na verdade parece-me já estar bem mais comportada. Haruki, a gata, continua a ser marota, mas já foi mais.

Deixando Galveias íamos em direcção a Redondo quando a tarde se instalava. Pelas duas da tarde estava um sol abrasador ainda no início de Maio, abrasador para quem é de frias terras e está habituado a outros sóis. Chegámos ao Alentejo e percebemos um Sol igualmente português, mas alentejano, não compassivo a sensibilidades térmicas. Pela nacional 224 esticámos pois as pernas em Galveias, uma terra pequenina e simpática, vislumbrar a pequenina terra de José Luís Peixoto, uma realidade tão distinta do Porto onde nasci. Embora não tenha particular interesse na obra de Peixoto, já o li e provavelmente lerei, parece-me ele ser dos poucos contemporâneos onde a escrita não brota do génio, porque génios não há, mas tem honestidade. Longo parecia o dia. Já em Redondo estávamos esfaimados, queríamos almoçar e a hora não ajudava. Encontrámos um restaurante ainda a servir e embora eu não tenha ficado muito contente com o meu arroz de pato, dadas as circunstâncias não me podia queixar! A sala era fresca e escura, algo contrastante com o exterior. Almoçámos e só pensávamos em chegar ao hotel. Rapidamente explorámos o centro de Redondo, um lugar pacato colorido. Uma feira do livro acontecia no jardim, onde a humildade da oferta debatia-se com a crueza dos preços. Estávamos estafados da viagem, cheios da beleza plana das rectas intermináveis da N224, passamos por um supermercado para uns abastecimentos, colocar gasolina e partimos então no calor para a Serra de Ossa. 

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A cadeia montanhosa com 653 metros de altura fica entre Estremoz e Redondo, e situado na Aldeia da Serra fica o Convento de São Paulo, hotel rural onde ficámos hospedados. Chegados e recebidos com simpatia, instalámo-nos. O calor era tanto que enquanto explorávamos alguns interiores do convento logo fomos experimentar a piscina. Refrescados, decidimos o resto da tarde para descansar.

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Para jantar fomos a Évora, onde de relance vimos a cidade o templo o fim do dia. Perto do templo romano é difícil não nos impressionarmos com a sua presença, as suas colunas coríntias altas graciosas a erguerem-se ao céu. O sol lançava os raios dourados sobre as antigas pedras onde ancestrais grandiosidades desse império presente passado são ainda emanadas. Belo pôr do sol o de Évora. Voltámos pela nacional numa exterior escuridão, rara de se conhecer. Éramos sozinhos fechados, nós e as nossas vozes numa caixa musical, numa estrada estreita no espaço imenso sem acontecimento. Um receio meu na felicidade, um receio lembrou-me "Animais Nocturnos", filme de Tom Ford tão mais artístico ao livro "Tony and Susan" de Austin Wright. Não existiam animais. Chegados, a terminar o primeiro dia, explorámos ainda o convento pela noite. Quanto tempo tem um dia?

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Os corredores amplos e tectos abobadados emolduram lustres antigos, a luz suave e mortiça desce sobre os corredores. As salas bem decoradas com velhos móveis, móveis elegantes, peças de arte sacra espalham-se à mistura e a capela principal adornada com belíssimos retábulos e imagens, aqui podemos encontrar contemplação, essa outra pose de religiosidade. O claustro, serenidade no coração do edifício. As suas arcadas graciosas erguem-se em torno do verdejante jardim com o murmúrio da fonte a pedra dos bancos o sentar na tranquilidade. Prometo ser breve nesse resto de dias em perfeição, difícil tempo meu aquele e ali num repente a minha vida resolvida. Agustina Bessa-Luís, mesmo quando fala sobre Vieira da Silva, sabe o suficiente da vida para ajudar a identificar largos dias destes. Estava a ser um outro espaço tempo, dia longo, e "Longos dias têm cem anos".

Até hoje li três romances de Jane Austen e embora considere "Mansfield Park" o mais bem estruturado, "Persuasão" conquistou um lugar especial por alguns motivos a destacar. Há 9 anos percebi que o havia lido de forma leviana, sem lhe dar o devido valor, e confirmei-o na sua releitura.

Os romances de Jane Austen são conhecidos pela sua ironia aplicada aos temas sociais. No entanto em "Persuasão" achei esta característica mais subtil e arguta do que a mais óbvia, diria fácil, de "Orgulho e Preconceito". Em comparação com Elizabeth Bennet em "Orgulho e Preconceito", a Anne Elliot de "Persuasão" é uma protagonista mais madura e introspectiva. Além de reflectir sobre suas escolhas passadas mostra um crescimento pessoal significativo ao longo do romance. Fanny Price em "Mansfield Park" dá-nos um belo reconto da Cinderela, possui um arco mais semelhante ao de Anne, mas sendo mais nova diria-a ficar ainda aquém da vida. Anne Elliot de alguma forma transpõe uma barreira e coloca-se numa posição onde a felicidade não é um lugar confortável ou feliz.

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“I hate to hear you talk about all women as if they were fine ladies instead of rational creatures. None of us want to be in calm waters all our lives.”

Em "Orgulho e Preconceito" e "Mansfield Park" notei uma diversidade de personagens secundárias a desempenharem papéis significativos na trama. Por sua vez "Persuasão" tende a fixar-se na jornada e desenvolvimento das personagens principais. As personagens secundárias servem para complementar a narrativa, adicionam à contenção do romance até ao seu desenlace final.

Na leitura de "Mansfield Park" vi um romance mais direccionado para a ruralidade. A acção centra-se numa propriedade rural inglesa. "Persuasão" é um livro de visões mais amplas, de exterior. Destaca-se pelas cenas costeiras e atmosfera marítima. A ambientação à beira-mar contribui para o tom melancólico e romântico do livro e, à semelhança de "Mansfield Park", já traz algo da posterior Virgínia Woolf com ele, características de Austen que não identifico com facilidade em "Orgulho e Preconceito".

"Orgulho e Preconceito" atenta nas primeiras impressões, na superação de preconceitos iniciais. Assuntos por ventura mais apelativos para quem ainda vive fases mais precoces da vida, onde essas mesmas situações são as mais determinantes da vivência. "Persuasão" destaca-se pela análise da segunda oportunidade, é um livro de espera. O romance explora como Anne Elliot e o Capitão Wentworth se reencontram e têm a oportunidade de reavivar um romance deixado de lado no passado por interferências, a persuasão e o ser persuadido que interrompem um vínculo natural para aqueles seres.

A maneira como Jane Austen descreve as emoções das personagens, as complexidades dos seus relacionamentos ressoa comigo enquanto leitor. Muitas vezes evoca uma sensação de nostalgia ou reflexão sobre as minhas próprias experiências, que, não sendo semelhantes, entendem-se em espaços comuns. "Persuasão" é um livro de uma maturidade que me exigia mais vida há 9 anos. Tem essa capacidade rara de evocar sentimentos indefiníveis, como uma espécie de melancolia feliz ou uma agridoce agonia. É um livro onde pela mestria da escrita as peças não existem, elas já se misturaram completamente e o romance propõe-se à vida como ela é.

Quero ler os livros de Jane Austen que ainda não li e constatar no todo a versatilidade desta mulher. Em três livros lidos, todos eles são distintos e propostas literárias interessantes. Curiosamente para mim, o favorito será o "Mansfield Park" a par com "Persuasão", não consigo ainda definir e, por fim, o aclamado "Orgulho e Preconceito", favorito para a maioria talvez pela tangibilidade na ironia e comédia, concreto em ter uma história. "Persuasão" é um livro de tremura em minúsculas fímbrias, dir-se-ia um livro de final feliz, mas isso é redutor, já falei disso no post O paradoxo da escrita simples, tão redutor como dizer: "Jane Austen limitou-se a escrever romances de água com açúcar."

Resumo mensal de leituras, algo a fazer aqui mais vezes a partir de agora, espero eu. Em Fevereiro acabei por ler mais do que contava. Decidi este ano voltar a definir listas de leitura mensais, parte delas ainda lidas em Janeiro, com o objetivo de incluir 'Estilhaços' do Bret Easton Ellis ainda no mês. Com jeito e regularidade nas leituras consegui acabar o Ellis e ainda adiantar uma leitura de Março e terminar o "Confissões" de Santo Agostinho.

"A Confissão de Lúcio" de Mário de Sá-Carneiro foi uma das doze releituras definidas para 2024 e correu muito bem. Continuo a achar uma novela notável, das melhores escritas na nossa língua, labiríntica reflexiva, com caminhos e sugestões sem nunca se comprometer com uma verdade. Lembra-me de alguma forma Fitzgerald, um favorito a ler mais vezes. 

Depois li "Butcher's Crossing" por sugestão do Hugo. Gostei de "Stoner" mas recusei-me à maluquice e reconhecimento dados a este romance do John Williams, devo dizer de "Butcher's Crossing" um livro mais complexo, a ir beber a "Moby Dick" e a um "Walden", gostei bastante, apesar de ainda achar que John Williams não é um escritor a ficar na minha lista de favoritos. Acabei por ficar surpreendido ao ponto de querer ler "Augustus".

Não sabia da adaptação de 'O Problema dos Três Corpos' na Netflix, esta leitura veio muito a calhar. Como quero fazer do blog um lugar de memória e central, vou transcrever a minha opinião resumida deixada num story:  Achei o livro muito bom, com alguns pontos não verosímeis ou preguiçosos. No livro entramos em contacto com extraterrestres mais desenvolvidos, torna-se assim estranho sermos nós a chegar lá primeiro e não o contrário,  sendo mais fácil acontecer como se processa na narrativa, apesar disto gostei muito da ideia de um aviso amigável que acontece. Pelo final o Liu Cixin encontra um artifício muito simples para explicar ao leitor todos os detalhes necessários, detalhes estes envolvidos em pouco ou nenhum enredo e pareceu-me preguiçoso. A alteração do discurso narrativo é muito boa, um texto mais frio e seco, sem os lirismos de outras partes que tanto apreciei. Preciso agora do "A Floresta Sombria", gostei também de este primeiro livro já estar escrito com pelo menos a ideia do segundo em vista. Agora espero pela adaptação.

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Finalmente tendo estes lidos, fui para o "Estilhaços" do Bret Easton Ellis. Não acho-o o melhor dos escritores contemporâneos, ou literariamente elevado, mas junto este livro a "Psicopata Americano" ao dizer que Ellis é literariamente relevante por quão icónico consegue ser. Este livro em particular, achei-o bom, lembrou-me de alguma forma "Lolita" do Nabokov, em como trabalhar determinado recurso. Nas suas mais de 600 páginas nunca me aborreceu, mesmo sendo provavelmente para muitos aborrecido. Bret é um jovem a terminar o secundário que anseia ser escritor, vive os seus dias de adolescência com os amigos, a sua namorada e os rapazes com que vai tendo casos frugais. Um desses rapazes torna-se pedra de toque do romance, e uma camada, talvez para mim a mais interessante de todo o romance, a camada psicológica que acrescenta e à qual o Bret resistiu a explicar-se. Por último consegui continuar a leitura do "Confissões", já fiz aqui um breve lembrete sobre o livro, não me alongo. Fiquei feliz por terminar uma leitura que adorei e estava de alguma forma a negligenciar.

Para terminar o post, das estatísticas de Fevereiro posso dizer que sem a batota dos livros adiantados em Janeiro, não foram assim tão boas. Li dois livros completos (Liu Cixin e Bret Easton Ellis) e 1279 páginas, enquanto em Janeiro já havia lido 8 livros e 1732 páginas. Vamos lá ver como corre Março! 

 

 

É inspirador ver como Santo Agostinho em "Confissões" se questiona, de como as suas dúvidas continuam a ressoar e a desafiar leitores ainda hoje. A memória da sua história de conversão é fascinante na partilha das lutas e dúvidas até ter encontrado a fé. Tocou-me particularmente a questão do seu pai, o sofrimento abnegado da sua mãe, o seu sofrimento por ela e como ambos acabam por perdoar aquele homem. "Confissões" é uma jornada interior e proporciona uma visão íntima do processo de transformação espiritual, coloca questões universais sobre o significado da vida e existência de Deus e do Homem. Os questionamentos de Agostinho sobre o Tempo são além de interessantes também eles, até ver, humanamente atemporais. 

"Confessions" Saint Agustine, Penguin Books

"No one wants to sleep for ever, for everyone rightly agrees that is better to be awake."

O Tempo enquanto dimensão da nossa existência e a sua tentativa de compreensão dessa natureza é complexa e filosoficamente desafiante. Deixa-nos uma série de perguntas a serem pensadas, algo para mim mais importante a deixar respostas prontas. Nas suas reflexões sobre o Tempo somos convidados a contemplar nossa própria relação com este e o seu peso na nossa compreensão do ser e realidade. Era para ser lido em 2021, projeto falhado. Este post é um pequeno lembrete, tenta chegar à superfície desta última leitura de Fevereiro, terminada com um leve sorriso no conforto de quem procura.

Sobre

21aafb00b84d1f9249b0b9a10481d2f3.pngO blog enquanto página pessoal tem como objectivo trazer um registo da vida que se insurge à correria do dia a dia, intervalos no intervalo. O "breve intervalo" surge como pausa, reflexão e memória do não empregue nos meus cadernos. Ao fim, essa outra vida trivial: a das opiniões, dos passeios, do não se querer esquecer e manter em permanente rascunho.

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